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O Jantar de Babette.

"O jantar de Babette". 
"Babette dispusera uma fileira de velas no centro da mesa; as pequenas chamas lançaram um fulgor sobre os casacos e vestidos pretos e sobre o único uniforme escarlate, refletindo-se nos olhos claros e úmidos". (0)Foi então,  tudo milimetricamente pensado para o jantar em homenagem ao pastor. O general Loewenhielm, um pouco desconfiado de seu vinho, deu um gole, sobressaltou-se, ergueu o copo primeiro até o nariz e depois na altura dos olhos e o pousou atônito. "Isto é muito estranho!", pensou. "Amontillado! E o melhor amortizado que já provei em minha vida". (...) tomou uma colherada de sopa, depois uma segunda colherada, e baixou a colher.  "Isto é incrivelmente estranho!", disse de si para si. "Pois sem dúvida estou tomando sopa de tartaruga... e que sopa de tartaruga!".(1) o jantar começou com um belo Amontillado, o qual, segundo Gomensoro "Diz-se do xerez de cor  escura, mais seco e de perfume mais rico. Geralmente, antes de ser exportado,  recebe um vinho mais doce, produzido com uvas Pedro Ximenes". (2) de sabor tão incrível que fez o general comemorar. A sopa de tartaruga por si só já requer um capítulo a parte. Babette precisou viajar para comprar especialmente para aquele jantar. A tartaruga servida provavelmente era de água salgada. Monteleone em seu trabalho sobre alimentação e suas práticas em São Paulo, nos diz que por lá, em fins do século XIX, a sopa de tartaruga tornou-se um prato emblemático. O prato logo se tornou afamado e disputado nos anúncios locais. Segundo a autora, esse ensopado de tartaruga não era associado à sopa tradicionalmente elaborada no Norte do país, mas, estava associada à tradição gastronômica da Europa, sendo particularmente “associada à culinária da Inglaterra”, tanto que o restaurante Stadt Bern anunciava que serviria, além da sopa, “filets fique à moda inglesa”.(3) Também vale dizer que, no caso da Amazônia, os diversos tipos de tartarugas cujas 
carnes eram servidas eram de água doce, ao passo que, em São Paulo era servido 
somente um tipo de tartaruga marinha, o que elevava o preço e deixava o prato mais 
refinado. Desta forma, a autora conclui que: “A tartaruga servida em São Paulo possuía um significado claro, ao associar seu consumo aos hábitos de civilização 
europeia e cosmopolita. Era uma comida chique - e também tornavam-se chiques os que podiam pagar para comê-la”.(4)
A noite seguia, "quando um novo prato foi servido, ficou em silêncio.  "Incrível!", disse para si mesmo. "É Blinis Demidoff!" (5) Ora, um Blinis Demidoff!!!, uma espécie de panqueca "de origem. Russa feita com farinha de rosca misturada com. Farinha de trigo e gemas de ovos. Depois de batida a massa é frita na manteiga (...) sendo frequentemente servida com caviar ou creme azedo". (6) Aliás,  esse teria sido o acompanhamento do Blinis Demidoff feito por Babette. E assim, "O general Loewenhielm mais uma vez baixou o copo, virou-se para o vizinho da direita e disse: "Mas sem dúvida tratar-se de um Veuve Clicquot 1860, não?". (7) E isso explica ainda o quanto o valor do jantar do elevado. Um Veuve Clicquot, conhecido pelo seu rótulo laranja, foi a marca de champagne responsável por tornar a bebida sinônimo de elegância e refinamento. Era portanto, uma champagne de "poucas mesas".
"O general Loewenhielm virou-se para o comensal à esquerda e disse: Mas isto é Cailles en Sarcophage!".(8) Na ocasião,  o general lembrou de um jantar em Paris memorável para seus sentidos, e que fora servido "um prato incrivelmente refinado e saboroso (...) ele perguntara o nome para um colega ao lado, o coronel Galliffet, e o coronel explicou-lhe sorridente que se chamava " Cailles en Sarcophage". Posteriormente,  contou-lheque o prato fora criado pelo chef daquele mesmo café onde jantavam, uma pessoa conhecida por toda Paris como o maior gênio culinário da época,  e - o mais surpreendente - uma mulher!". (9) Nada foi mais emblemático num filme do que as codornas em sarcófago, naquela época tanto as codornas quanto os pombos tinham presença constante nos Jantares formais. Contudo, Babette tornou o prato uma perfeição aos olhos e paladares. Para finalizar o jantar, as melhores frutas frescas. Aliás, "O general Loewenhielm não se espantava mais com nada. Quando, poucos minutos depois, viu uvas, pêssegos e figos frescos diante de si, riu para o comensal do outro lado da mesa e observou:"Que uvas lindas!". (10) E aqui é bom que se lembre que as frutas frescas geralmente eram produtos de valor elevado. As frutas frescas como pêssego, figos e uvas tinham lugar de destaque nos banquetes e refeições formais, como nos esclarece Maria Lúcia Gomensoso: “Nos banquetes ou refeições formais, é o último serviço. Serve-se geralmente somente depois que todos os partos salgados e condimentos foram retirados da mesa. Oferece-se, além de doces, frutas frescas e secas, acompanhadas de um vinho de sobremesa". (11). Por tudo já disposto aqui, fica evidente que o jantar servido por Babette era uma perfeita versão de um jantar no Café Anglais, realidade que ela conhecia muito bem. Babette se considerava uma artista, ficou imensamente realizada em gastar tudo que tinha para proporcionar as irmãs que a acolheram tão bem e por quem aquela mulher fugida da Comuna de Paris e que perdeu marido e filho, tinha tanta gratidão.
Mas, o fez por ela também,  para brilhar mais uma vez no "palco" que tanto gostava:a cozinha. Disse as irmãs, por duas vezes que ela era "Uma grande artista"; "Sou uma grande artista, madames". (12) E Babette o era!
A cozinha também é isso! 
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📚✍🏽 Referências. 
📌 Lembramos que se você faz uso dos meus textos, peço que dê os créditos e faça a citação. Afinal, aí reside a riqueza da literatura bibliográfica: a sua diversidade de escritos. 
🎨 Com ilustração de Talita Almeida Rosário. @talita.m 
(0)(1)(5)(7)(8)(9)(10)(12)Karen Blixen. A festa de Babette. Tradução Cássio de Andrade Leite. Cosac Naify portátil. 1 edição, São Paulo, 2014, p. 40;41;42;43; 44; 45; 53
(3)(4) MONTELEONE, Joana. Sabores urbanos, alimentação, sociabilidade e consumo: São Paulo, 1828-1910. São Paulo: Alameda, 2015, p. 123;127;124. 
(2)(6) (11)Gomensoro,  Maria Lúcia. Pequeno dicionário de gastronomia. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999, p. 340. p.29;67; 148. 

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